SEGUNDA CONFISSÃO HELVÉTICA¶
17. Da Igreja de Deus, santa e católica, e do único Cabeça da Igreja.¶
A Igreja sempre existiu e sempre existirá. Visto que Deus desde o princípio quis salvar os homens e trazê-los ao conhecimento da verdade (1 Tm 2.4), é absolutamente necessário que a Igreja tenha existido no passado, exista agora e continue até o fim do mundo.
Que é a Igreja. A Igreja é a assembléia dos fiéis convocada ou reunida do mundo: é, direi, a comunhão de todos santos, isto é, dos que verdadeiramente conhecem, adoram corretamente e servem o verdadeiro Deus em Cristo, o Salvador, pela palavra e pelo Espírito Santo, e que, finalmente, participam, pela fé, de todos os benefícios gratuitamente oferecidos mediante Cristo. Cidadãos de uma comunidade. São todos eles cidadãos de uma só cidade, vivem sob o mesmo Senhor, sob as mesmas leis, e na mesma participação de todos os benefícios. O apóstolo os chamou “concidadãos dos santos, e … da família de Deus” (Ef 2.19), denominando “santos” os fiéis na terra (1 Co 4.1), que são santificados pelo sangue do filho de Deus. Deve ser entendido inteiramente com relação a estes santos o artigo do Credo: “Creio na santa Igreja católica, na comunhão dos santos”.
Uma só Igreja em todos os tempos. E, visto que há sempre um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus o Messias, e um só Pastor de todo o rebanho, uma só Cabeça deste corpo, enfim, um só Espírito, uma só salvação, uma só fé, um só testamento ou aliança, segue-se, necessariamente, que existe uma só Igreja. A Igreja católica. Por isso chamamos “católica” e essa Igreja, porque é universal, e se espalha por todas as partes do mundo, estende-se por todos os tempos e não é limitada pelo tempo ou pelo espaço. Condenamos, portanto, os donatistas, que confinavam a Igreja a não sei que cantos da África, e não aprovamos o clero romano, que vive a propalar que só a Igreja de Roma é católica.
Partes ou formas da Igreja. A Igreja divide-se em diferentes partes ou formas, não por estar dividida ou rasgada em si mesma, mas por ser distinta pela diversidade dos seus membros. Militante e triunfante. Uma é chamada a Igreja Militante e a outra a Igreja Triunfante. A primeira ainda milita na terra e luta contra a carne, o mundo e o Diabo, que é o príncipe deste mundo, e contra o pecado e a morte. A outra, já deu baixa e triunfa no céu depois de ter vencido esses inimigos, e exulta diante do Senhor. Entretanto, essas duas igrejas têm comunhão e união uma com a outra.
A Igreja particular. A Igreja Militante na terra tem tido, sempre, muitas igrejas particulares. Contudo, todas estas devem ser referidas à unidade da Igreja católica. Esta Igreja (Militante) foi estabelecida de um modo antes da Lei, entre os patriarcas, de outro modo diferente sob Moisés, pela Lei; e de modo diferente por Cristo, por meio do Evangelho.
Os dois povos. Em geral se mencionam dois povos: os israelitas e os gentios, ou aqueles que foram congregados de entre judeus e gentios na Igreja. Há, também, dois Testamentos, o Velho e o Novo. A mesma Igreja para o velho e o novo povo. No entanto, de todos esses povos foi e ainda é só uma a comunidade, uma só a salvação num só Messias, em quem, como membros de um só corpo, sob um só Cabeça, todos estão unidos na mesma fé, participando também do mesmo alimento e da mesma bebida espiritual. Aqui, porém, reconhecemos uma diversidade de tempos e uma diversidade nos sinais do Messias prometido e manifestado; agora, abolidas as cerimônias, a luz brilha sobre nós de maneira mais clara, e bênçãos nos são dadas mais abundantemente, e uma liberdade mais completa.
A Igreja, casa do Deus vivo. Esta santa Igreja de Deus é chamada a casa do Deus vivo, construída de pedras vivas e espirituais e fundada sobre uma rocha firme, sobre fundamento que ninguém tem o direito de substituir por um outro, e é, assim chamada “coluna e baluarte da verdade” (1 Tm 3.15). A Igreja não erra. Ela não erra, enquanto se apóia sobre a rocha, Cristo, e sobre o fundamento dos profetas e apóstolos. E não é de admirar se ela errar, todas as vezes que abandonar aquele que, só, é a verdade. A Igreja noiva e virgem. A Igreja é também chamada virgem e a noiva de Cristo e, em verdade, única e dileta. O apóstolo diz: “Tenho-vos preparado para vos apresentar como virgem pura a um esposo” (2 Co 2.2). A Igreja, rebanho de ovelhas. A Igreja é chamada rebanho sob um só pastor, Cristo, segundo Ez 34 e Jo 10. A Igreja corpo de Cristo. É chamada também corpo de Cristo, porque os fiéis são os membros vivos de Cristo, sob Cristo, o Cabeça.
Cristo o único cabeça da Igreja. É a cabeça que tem a preeminência no corpo, e dela o corpo todo recebe vida; pelo seu espírito o corpo é em tudo governado; dela, ainda, o corpo recebe incremento e crescimento. Mais ainda, há uma só cabeça do corpo a qual com ele se ajusta. Por isso a Igreja não pode ter nenhuma outra cabeça além de Cristo. Como a Igreja é um corpo espiritual, ela precisa ter também uma cabeça espiritual em harmonia consigo mesma. Não pode ser governada por outro espírito que não seja o Espírito de Cristo. Por conseguinte, São Paulo diz: “Ele é a cabeça do corpo, da igreja. Ele é o princípio, o primogênito de entre os mortos, para em todas as cousas ter a primazia” (Cl 1.18). E em outro lugar: “Cristo é o cabeça da igreja, sendo este mesmo salvador do corpo” (Ef 5.23). E novamente: Ele é “o cabeça sobre todas as cousas, e o deu à igreja, a qual é o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em todas as cousas” (Ef 1.22 ss). Também: “Cresçamos em tudo naquele que é o cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado… efetua o seu próprio aumento” (Ef 4.15 ss). Por isso não aprovamos a doutrina do clero romano, que faz do seu Pontífice Romano o pastor universal, o cabeça supremo da Igreja Militante aqui na terra, e assim o próprio vigário de Jesus Cristo, que tem, como eles dizem, toda a plenitude de poder e soberana autoridade na Igreja. Cristo o único pastor da Igreja. Ensinamos que Cristo, nosso Senhor, é e continua a ser o único pastor universal e sumo Pontífice diante de Deus seu Pai, e que na Igreja ele mesmo realiza todas as funções de um pontífice ou pastor, até o fim do mundo; [VIGÁRIO] e, consequentemente, não necessita de vigário, que é substituto de quem está ausente. Mas Cristo está presente com sua Igreja e é sua cabeça vivificadora. Nenhum primado na Igreja. Ele proibiu, com toda a severidade, aos seus apóstolos e sucessores qualquer veleidade de primado e domínio na Igreja. Portanto, todos os que resistem, opondo-se a essa verdade transparente, e introduzem outro governo na Igreja de Cristo devem ser ligados àqueles, a respeito de quem profetizam os apóstolos de Cristo, São Pedro e São Paulo, em 2 Pe 2, e At 20.2, 2 Co 11.2, 2 Ts 2, assim como em outros passos.
Nenhuma confusão na Igreja. Contudo, repudiando o cabeça romano, não introduzimos na Igreja de Cristo nenhuma confusão ou perturbação, pois ensinamos que o governo da Igreja, estabelecido pelos apóstolos, nos é suficiente para conservar a Igreja na devida ordem. No princípio, quando a Igreja não tinha esse chefe romano, que hoje, como se diz, a conserva em ordem, não estava em confusão ou desordenada. O chefe romano preserva, na verdade, a sua tirania e a corrupção que foi introduzido na Igreja; e, ao mesmo tempo, ele impede, resiste e, com todas as suas forças, arruína a conveniente reforma da Igreja.
Dissentimento e luta na Igreja. Objetam-nos que tem havido várias lutas e dissensões em nossas Igrejas desde que se separaram da Igreja Romana, e que por isso elas não podem ser igrejas verdadeiras. Como se nunca tivesse havido seitas na Igreja Romana, nem dissensões e lutas a respeito de religião, e na verdade presentes não tanto nas escolas como nos púlpitos no meio do povo. Sabemos, certamente, que o apóstolo disse: “Deus não é de confusão; e, sim, de paz” (1 Co 14.33). E: “porquanto, havendo entre vós ciúmes e contendas, não é assim que sois carnais?” Contudo, não podemos negar que Deus estava na Igreja apostólica e que a Igreja apostólica era Igreja verdadeira, não obstante a existência de combates e dissensões nela. O apóstolo São Paulo repreendeu o apóstolo São Pedro (Gl 2.11 ss), e Barnabé divergiu de Paulo. Grande luta surgiu na Igreja de Antioquia entre os que pregavam o único Cristo, como Lucas registra nos Atos dos Apóstolos, cap. 15. E tem havido, em todos os tempos, graves lutas na Igreja, e os mais eminentes doutores da Igreja divergiram de opinião entre si acerca de importantes assuntos, sem, no entanto, a Igreja deixar de ser aquilo que ela era, por causa de tais contendas. Pois, dessa forma, é do agrado de Deus usar as dissensões que surgem na Igreja para a glória do seu nome, para elucidar a verdade e para que os que são aprovados sejam manifestados (1 Co 11.19).
Marcas ou sinais da verdadeira Igreja. Ademais, visto que não reconhecemos nenhum outro chefe da Igreja a não ser Cristo, de igual modo não reconhecemos como a verdadeira Igreja qualquer Igreja que se vangloria de o ser; ensinamos, no entanto, que a verdadeira Igreja é aquela em que se encontram as marcas ou sinais da verdadeira Igreja, principalmente a legítima e sincera pregação da palavra de Deus como nos foi deixada nos escritos dos profetas e apóstolos, que nos conduzem todos nós a Cristo, que no Evangelho disse: “As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna… De modo nenhum seguirão o estranho, antes fugirão dele porque não conhecem a voz dos estranhos” (Jo 10.5, 27-28).
E aqueles que são assim na Igreja de Deus têm uma fé e um espírito; e por isso adoram o único Deus e só a ele cultuam em espírito e verdade, só a ele amando de todo o coração e de todas as suas forças, só a ele orando por meio de Jesus Cristo, o único Mediador e Intercessor; e não buscam nenhuma justiça e vida fora de Cristo e da fé nele. Pelo fato de reconhecerem a Cristo como o único chefe e fundamento de sua Igreja, apoiando-se nele, renovam-se diariamente pelo arrependimento e, com paciência, carregam a cruz imposta a eles. Além disso, congregados juntos com todos os membros de Cristo por um amor não fingido, revelam que são discípulos de Cristo perseverando no vínculo da paz e da santa unidade. Ao mesmo tempo participam dos sacramentos instituídos por Cristo e a nós entregues pelos seus apóstolos, não os usando de nenhuma outra maneira a não ser como os receberam do próprio Senhor. Aquela palavra do apóstolo São Paulo é bem conhecida de todos: “Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei” (1 Co 11.23 ss). Por causa disso, condenamos como alienadas da verdadeira Igreja de Cristo todas aquelas igrejas que não são como ouvimos que devem ser, a despeito do muito que se jactam de uma sucessão de bispos, de unidade e de antiguidade. Além do mais, temos a advertência dos apóstolos de Cristo, para que fujamos da idolatria e de Babilônia (1 Co 10.14; 1 Jo 5.21), e não tenhamos parte com ela se não queremos ser participantes das pragas de Deus (Ap 18.4; 2 Co 6.17).
Fora da Igreja de Deus não há salvação. Consideramos a comunhão com a verdadeira Igreja de Cristo coisa tão elevada que negamos que possa viver perante Deus aqueles que não estiverem em comunhão com a verdadeira Igreja de Deus, mas dela se separam. Pois, como não havia salvação fora da arca de Noé, quando o mundo perecia no dilúvio, igualmente cremos que não há salvação certa e segura fora de Cristo, que se oferece para o bem dos eleitos na Igreja; e por isso ensinamos que os que querem viver não podem separar-se da Igreja de Cristo.
A Igreja não está limitada aos seus sinais. Entretanto, pelos sinais acima mencionados, não restringimos a Igreja ao ponto de ensinarmos que estão fora dela todos aqueles que ou não participam dos sacramentos, pelo menos não voluntariamente ou por desprezo, mas antes, forçados pela necessidade, involuntariamente se abstêm deles ou deles são privados, ou em quem a fé algumas vezes falha, embora não seja inteiramente extinta e não cesse de todo; ou em quem se encontram as imperfeições e erros devidos à fraqueza. Sabemos que Deus teve alguns amigos no mundo fora da comunidade de Israel. Sabemos do que aconteceu ao povo de Deus no cativeiro da Babilônia, onde foram privados dos seus sacrifícios por setenta anos. Sabemos o que aconteceu a São Pedro, que negou o Mestre, e o que costuma acontecer diariamente aos eleitos de Deus e às pessoas fiéis que se desviam e são fracas. Sabemos, mais, que tipo de igrejas eram as existentes na Galácia e em Corinto nos dias dos apóstolos, nas quais o apóstolo encontrou muitos e sérios pecados; apesar disso ele as chama santas igrejas de Cristo (1 Co 1.2; Gl 1.2).
A Igreja às vezes parece estar extinta. Sim, muitas vezes acontece que Deus, em seu justo juízo, permite que a verdade da sua Palavra, a fé católica e o culto verdadeiro de Deus sejam de tal forma obscurecidos e deformados, que a Igreja parece quase extinta e não mais existir, como vemos ter acontecido nos dias de Elias (1 Reis 19.10, 14), e em outras ocasiões. Não obstante, Deus tem, neste mundo e nestas trevas, os seus verdadeiros adoradores, que não são poucos, chegando mesmo a sete mil e mais (1 Reis 19.18, Ap 7.4, 9). Pois o apóstolo exclama: “O firme fundamento de Deus permanece, tendo este selo, ‘O Senhor conhece os que lhe pertencem’”, etc. (2 Tm 2.19). Vem daí que pode a Igreja de Deus ser designada invisível; não que os homens dos quais ela é formada sejam invisíveis, mas porque, estando oculta de nossos olhos e sendo conhecida só de Deus, ela às vezes secretamente foge ao juízo humano.
Nem todos os que estão na Igreja são da Igreja. Por outro lado, nem todos os que são contados no número da Igreja são santos ou membros vivos e verdadeiros da Igreja. Pois há muitos hipócritas que externamente ouvem a palavra de Deus e publicamente recebem os sacramentos, e parecem invocar a Deus somente por meio de Cristo, confessar que Cristo é a sua única justiça, e adorar a Deus e exercer os deveres de caridade e por algum tempo suportar com paciência as desgraças. E, não obstante, interiormente, estão completamente destituídos da verdadeira iluminação do Espírito, de fé e de sinceridade de coração, e de perseverança até o fim. Mas finalmente o caráter destes homens, em sua maior parte, será manifestado. O apóstolo São João diz: “Eles saíram de nosso meio, mas não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco” (1 Jo 2.19). Todavia, conquanto simulem piedade, não são da Igreja, ainda que sejam considerados estarem na Igreja, exatamente como os traidores numa república estão incluídos no número de seus cidadãos, antes que sejam descobertos; e, como o joio e a palha se encontram no trigo, e como inchaços e tumores se acham no corpo sadio, quando ao contrário são doenças e deformidades e não genuínos membros do corpo. E assim a Igreja de Deus é muito adequadamente comparada a uma rede que retira peixes de todas as espécies, e a um campo no qual se encontram joio e trigo (Mt 13.24 ss, 47 ss).
Não devemos julgar irrefletida e prematuramente. Consequentemente, devemos ser muito cuidadosos, não julgando antes da hora, nem tentando excluir e rejeitar ou separar aqueles aos quais o Senhor não quer excluídos nem rejeitados, e nem aqueles que não podemos eliminar sem prejuízo para a Igreja. Por outro lado, devemos estar vigilantes para que, enquanto os piedosos ressonam, os ímpios não ganhem terreno e causem mal à Igreja.
A unidade da Igreja não consiste em ritos externos. Além disso, diligentemente ensinamos que se deve tomar grande cuidado naquilo em que consistem de modo especial a verdade e a unidade da Igreja, para não provocarmos nem alimentarmos cismas na Igreja, irrefletidamente. A unidade não consiste em cerimônias e ritos externos, mas antes na verdade e unidade da fé católica. A fé católica não nos é transmitida pelas leis humanas, mas pelas Santas Escrituras, das quais é um resumo o Credo Apostólico. E, assim, lemos nos escritores antigos que havia grande diversidade de cerimônias, mas que eram livres e ninguém jamais pensava que a unidade da Igreja era, desse modo, dissolvida. Assim, ensinamos que a verdadeira harmonia da Igreja consiste em doutrinas e na verdadeira e unânime pregação do Evangelho de Cristo, nos ritos que foram expressamente transmitidos pelo Senhor. E aqui insistimos na palavra do apóstolo: “Todos, pois, que somos perfeitos, tenhamos este sentimento; e, se porventura pensais doutro modo, também isto Deus vos esclarecerá. Todavia, andemos de acordo com o que já alcançamos” (Fp 3.11 ss).
Texto de: O Livro de Confissões, (São Paulo, Missão Presbiteriana do Brasil Central, 1969).